quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O cinema como máquina do tempo e da memória

A chegada às salas de cinema portuguesas da mais recente longa-metragem do norte-americano Martin Scorsese está marcada por uma curiosidade pública que já se tornou habitual em plena corrida aos Óscares. E as razões são simples: A Invenção de Hugo (título original: Hugo) tem a proeza de ser o filme nomeado para mais prémios na edição deste ano (onze, entre os quais as categorias de melhor filme e realizador) e, à semelhança de O Artista (filme nomeado para 10 Óscares), tem a particularidade de servir como uma carta de amor ao cinema. Para reforçar a ironia, enquanto o último tem deslumbrado por ser um filme francês, mudo e a preto e branco situado na Hollywood do final dos anos 20, A Invenção de Hugo pretende glorificar os primórdios do cinema na Paris dos anos 30 utilizando a mais recente das tecnologias: o 3D. 



O ponto de partida desta aventura é A Invenção de Hugo Cabret (editado em Portugal pela Gailivro), um livro para crianças, escrito e ilustrado por Brian Selznick, que acompanha a jornada de Hugo (encarnado por Asa Butterfield, que conhecemos pela sua interpretação em O Rapaz do Pijama às Riscas), um jovem órfão que vive em segredo dentro de um relógio numa estação de comboios parisiense. Na tentativa de reparar um autómato (a “invenção” de que fala o título e que nos remete às criações do relojoeiro Pierre Jaquet-Droz), que crê ter uma mensagem do seu pai (Jude Law), Hugo trava amizade com uma rapariga e cruza-se com o seu tio, que desvenda ser o mítico cineasta francês Georges Méliès (n. 1861), apresentado aqui na Gare Montparnasse(onde parte do filme decorre), local onde assistimos a uma evocação do descarrilamento ocorrido em 1895. (À esquerda e de cima para baixo: uma imagem de A Invenção de Hugo, outra de L’arrivée d’un train à la Ciotat [dos irmãos Lumière, filmado em 1896], e em baixo uma fotografia do desastre em Montparnasse).


Terceiro filho de um bem-sucedido sapateiro, o futuro realizador nunca quis seguir as pegadas do ofício da família. Mostrando sempre um interesse especial pelas artes plásticas e pelas letras contrariou a vontade dos pais e seguiu, primeiro, carreira no mundo do espetáculo e do ilusionismo e, quando descobriu as imagens em movimento, no cinema, onde criou o primeiro estúdio, desenhou, interpretou e produziu mais de 500 filmes. Falido e incapaz de acompanhar a evolução do cinema, morreu aos 77 anos como um dono de uma loja de brinquedos em Paris. 



Num momento decisivo em que o cinema dá a sua reviravolta para o digital e para as três dimensões, Martin Scorsese relembra um título decisivo do património cinematográfico. Estreado há 110 anos e considerado o primeiro filme de ficção científica, A Viagem à Lua (Le Voyage dans la Lune), regressa ao nosso imaginário pela primeira vez numa cópia restaurada e a cores. 


Então vista como um filme de longa duração (já que, com os seus 14 minutos, ultrapassava em metragem os habituais dois minutos nas anteriores experiências), projetado a 16 imagens por segundo, a fita do cineasta francês propõe-se a acompanhar, após a concordância de um congresso de astronomia (liderado pelo próprioMéliès), uma expedição de vários cientistas à Lua. Através de uma nave espacial, os astrónomos são projetados para o olho direito do satélite (que ao ser apresentado com um aspeto antropomórfico se tornou numa das imagens mais emblemáticas do filme). Na sua superfície, combatem uma população de seres alienígenas com os seus guarda-chuvas e fogem para a Terra, onde são recebidos na capital francesa com grande entusiasmo. 


Apesar da sua leve ingenuidade, A Viagem à Lua contrariou a tendência documental do cinema dos irmãos Lumière, apresentando-o pela primeira vez como dispositivo de ficção e uma arte do entretenimento. A partir de técnicas inovadoras de montagem, Méliès descobria então as possibilidades que hoje sabemos pertencer especificamente ao cinema. As 13.375 imagens que compunham o filme foram também coloridas à mão, uma por uma. 


Contudo, a versão colorida foi durante décadas considerada perdida até 1993, quando em Barcelona se descobriu uma cópia extremamente degradada que foi alvo de um delicado e ambicioso restauro (liderado porTom Burton) e trabalho de separação e digitalização de cada imagem, que terminaria apenas em 2010. Hoje só podemos ficar agradecidos por ter uma das maiores obras-primas do cinema ao nosso inteiro alcance. 

(Em cima: uma imagem de A Invenção de Hugo
outra de The Magic Box, filme de 1951 realizado por John Boulting).


Este confronto entre o presente tecnológico e as raízes do cinema está patente em A Invenção de Hugo, através de um jogo de citações, auto-citações e reproduções próprio da cinefilia conscienciosa do autor. Através de várias citações que, direta ou indiretamente, são introduzidas, o filme acaba por funcionar como uma verdadeira lição de cinema, exibindo obras icónicas dos Lumière,Griffith ou Chaplin(À esquerda: uma imagem de A Invenção de Hugo, outra de Safety Last / O Homem Mosca, filme de 1923 realizado por Fred C. Newmeyer, com Harold Lloyd).

Tomem-se como exemplo as narrativas paralelas à da jornada de Hugo ou os primeiros minutos da sequência inicial, e que consegue, sem recorrer à palavra, transportar um espírito que é, para além de exclusivamente cinematográfico, próprio do cinema mudo — sem que isso traga, nalgum momento, algum sabor de paródia (como trazem filmes como O Artista). 

História adaptada por John Logan, argumentista de O Aviador (realizado também porScorsese), A Invenção de Hugo carrega consigo uma atmosfera de nostalgia e inocência, a partir uma pulsão por vezes pedagógica e intensificada em grande parte pela música (de Howard Shore) e pela fotografia dirigida por Robert Richardson (que trabalhou com Scorsese em O Aviador e, mais recentemente, em Shutter Island), que utiliza as potencialidades dramáticas das três dimensões (James Cameron, responsável por títulos como Avatar Titanicconsiderou, e com justeza, que esta é a melhor utilização alguma vez feita do 3D). (À direita: uma imagem de A Invenção de Hugo, outra de Shutter Island, dirigidos por Scorsese.)

Defensor fervoroso do restauro e preservação dos filmes, o que Martin Scorsese aqui parece edificar é uma ode, não àquilo que já não existe, mas às possibilidades infinitas da máquina do tempo que sempre foi o cinema.
Este texto adapta dois artigos originalmente publicados no Diário de Notícias, nos dias 15 e 16 de fevereiro de 2012.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Partilha