terça-feira, 23 de outubro de 2012

As escutas como instrumento de luta política


de Daniel Oliveira

Pedro Passos Coelho foi escutado "fortuitamente" na investigação do caso Monte Branco. Ao que parece, nada que comprometa o primeiro-ministro foi ali ouvido. Mas os jornais deram conta desta escuta. "É preciso saber o que se passou para essa ilegalidade ter acontecido, quem é responsável por esse segredo de justiça ter sido quebrado", disse Passos Coelho, concluindo: "o jornal parece ter mais informação do que eu". Tem toda a razão. Lamento apenas que muitos dirigentes do PSD e até alguns juristas dessa área não tenham compreendido isso mesmo a quandodas escutas a José Sócrates no caso Face Oculta. E não tenham compreendido a indignação dos que, opondo-se a Sócrates, não embarcaram na campanha.
A facilidade com que "fortuitamente" se apanham conversas com primeiros-ministros indiciam que as escutas, em vez de serem uma forma extrema e absolutamente excepcional de recolha de prova se transformaram numa banal forma de investigar. Escutando tudo e todos, sem especial critério ou cuidado. Mais extraordinário: apesar da banalização de uma forma excepcional de recolher prova os processos continuam quase todos a acabar na gaveta. Mesmo não produzindo quaisquer efeitos, as escutas, ou pelo menos a notícia da sua existência, acabam invariavelmente nas páginas dos jornais. Ou seja, elas não chegam para condenar ninguém, mas chegam para fazer política através de meios policiais.
Sou insuspeito de ter qualquer simpatia por Passos Coelho. Mas fica a minha posição para memória futura: mesmo que alguma vez exista alguma escuta politicamente mais comprometedora para Passos Coelho, não quero saber nada sobre ela. Nem da sua existência, nem do seu conteúdo. A não ser que haja qualquer prova que Passos Coelho, José Sócrates ou qualquer outro político cometeram ilícitos criminais - e mesmo aí só quero saber quando a investigação for pública -, recuso-me a três coisas: a transformar o Ministério Público ou a Polícia Judiciária em atores do confronto político; a permitir que as escutas telefónicas ou violação de correspondência, atos por natureza gravíssimos, se transformem em instrumentos de investigação jornalística, através da utilização de meios policiais; e a substituir o debate político pela judicialização das divergências.
Assim, e ao contrário do que defende Henrique Monteiro , penso que, não havendo indícios criminais, as escutas devem ser destruídas. Não quero saber se Passos Coelho tem ou não receio que as suas conversas sejam públicas. Quero dar-lhe o direito de ter esse receio para eu próprio o ter. Porque todos temos direito a não querer, pelas mais diversas razões, que as nossas conversas sejam públicas. Se ele abdica desse direito estará, na prática, a obrigar os outros, eu incluído, a dispensar o direito à privacidade. Todos os registos de conversas telefónicas, conseguidos através de escutas, que não tenham utilidade numa investigação devem desaparecer. Independentemente da vontade do escutado. Para que não passarmos todos a ter de viver debaixo da chantagem do "quem não deve não teme". Imaginem que, numa conversa deste género, há informações sobre a vida privada do escutado, que não têm qualquer relvância judicial ou política. Perante este hábito de disponibilizar as escutas, que suspeita passa a pesar sobre quem não queira que elas sejam públicas? Que tem alguma coisa a esconder aos cidadãos. Eu não quero viver num País assim.
Não contarão comigo, como comentador, para degradar ainda mais o debate político como, infelizmente, muitos opositores de direita (felizmente a maioria da esquerda ficou fora disso) fizeram no tempo de José Sócrates. Se há gente no governo envolvida em casos de corrupção e favorecimento, investigue-se. Os jornais, através dos meios que têm ao seu dispor, onde as escutas não estão nem podem estar incluídas. A justiça, usando os instrumentos que a lei lhe dá, com as limitações que a lei impõe, e garantindo o sigilo a que o seu trabalho obriga. Se Ministério Público e Polícia Judiciária não conseguem manter segredo das escutas que fazem, então tem de se lhe retirar o poder de as fazer. Poderes excepcionais só se dão a quem demonstra ser merecedor de uma excecional confiança.

Fonte: Arrastão

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